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MÉDIO TEJO – Associação Portuguesa da Mulher na Gravidez e Parto questiona Ministra da Saúde: «Quantas mulheres e bebés terão ainda de morrer?»

A Associação Portuguesa pelos Direitos da Mulher na Gravidez e Parto direcionou uma carta aberta à Ministra da Saúde onde coloca a questão: «Quantas mais mortes são necessárias?», numa alusão às trágicas ocorrências que vitimaram dois bebés, precisamente neste recente 27 de Julho e ainda em Junho último, respetivamente no Médio Tejo e nas Caldas da Rainha. A situação mais recente já foi mencionada: uma grávida, em trabalho de parto, consulta o Portal do Serviço Nacional de Saúde e percebe que a urgência de obstetrícia e ginecologia do Hospital de Abrantes está fechada e, por isso, decide pedir auxílio à Unidade de Santarém, para onde se encaminhou. Infelizmente o pior aconteceu pelo caminho. E a grávida, de Vila de Rei, perdeu o seu filho. A Associação Portuguesa pelos Direitos da Mulher na Gravidez e Parto questiona, agora, Marta Temido sobre quantas mulheres e bebés terão ainda de morrer? Por ser agosto, pelas férias, por falta de médicos e meios? Pelo desinvestimento sucessivo no Serviço Nacional de Saúde? Pelas desculpas de uma pandemia que já passou, mas que serviu e continua a servir para adiar e cancelar consultas, exames de diagnóstico e ilibar os decisores políticos de olhar de frente para o colapso que se está a desenrolar diante dos nossos olhos?».

Eis o teor da carta aberta: «A atual situação da obstetrícia em Portugal é difícil de encarar. Na passada quarta feira, dia 27 de julho, após consultar o portal do SNS para saber a que unidade de saúde se devia dirigir, uma mulher em trabalho de parto percorreu mais de 100 km até Santarém, após verificar que o serviço de urgência de Ginecologia e Obstetrícia do Hospital de Abrantes, na sua área de residência, estava fechada. À chegada, constatou-se que o bebé se encontrava morto. Em junho passado, uma grávida perdeu o bebé, após ter sido atendida no Hospital das Caldas da Rainha, onde, no momento, a urgência de obstetrícia se encontrava encerrada. A possibilidade de consulta no portal online do SNS da informação relativa aos serviços de urgência de ginecologia/obstetrícia e bloco de partos não resolve as insuficiências no atendimento nesta especialidade. O problema só se resolve com uma rede real e efetiva de serviços de saúde pública e de qualidade, que garanta o acesso de todas as pessoas a cuidados de saúde de excelência. As grávidas e suas famílias precisam do livre acesso aos cuidados de saúde a que têm direito. Merecem ser bem tratadas e estarem fora de perigo, ter acesso à informação, consentimento informado ou recusa informada e respeito pelas suas escolhas e preferências. A terem a sua privacidade e confidencialidade protegidas. A serem tratadas com dignidade e respeito, igualdade no tratamento que recebem, e a não serem discriminadas. Todas as pessoas têm o direito à liberdade, autonomia, autodeterminação e a estarem livres de coação. Atualmente, em Portugal, nem o acesso aos cuidados de saúde está garantido. A Lei n.º 110/2019, de 9 de setembro, que estabelece os princípios, direitos e deveres aplicáveis em matéria de proteção na pré-concepção, na procriação medicamente assistida, na gravidez, no parto, no nascimento e no puerpério, está longe da realidade. Em Portugal morre-se no parto tanto como há 38 anos atrás. Não evoluímos nada durante uma geração? Ao que parece, estamos a andar para trás. Quantas mulheres e bebés terão ainda de morrer, senhora Ministra? Por ser agosto, pelas férias, por falta de médicos e meios? Pelo desinvestimento sucessivo no nosso Serviço Nacional de Saúde? Pelas desculpas de uma pandemia que já passou, mas que serviu e continua a servir para adiar e cancelar consultas, exames de diagnóstico e ilibar os decisores políticos de olhar de frente para o colapso que se está a desenrolar diante dos nossos olhos? Quem pode, recorre ao privado. Para agendar a ecografia que já devia ter acontecido ou garantir que as portas não estarão fechadas no dia do seu parto. E quem não pode? O fosso entre as que podem e as que não podem alarga-se, com consequências graves para a populações mais vulneráveis, e nada se faz. Este é um problema estrutural e profundo, que não se vai resolver quando os obstetras voltarem de férias.

Deixamos abaixo algumas recomendações.

A nível político, recomendamos:

● A mobilização imediata de meios pelo Estado, à semelhança do que aconteceu durante a pandemia, para resolver a crise nas urgências de obstetrícia, evitando mais situações potencialmente fatais na assistência às parturientes, seja através do reforço da contratação por entidades públicas seja pela articulação – temporária e com carácter provisório – com os serviços privados, para atendimento das populações sem acesso a urgências públicas de obstetrícia.

● Um efetivo investimento no Serviço Nacional de Saúde, assegurando a oferta de serviços de saúde de qualidade em todo o território nacional, de forma universal e gratuita.

● A promoção do respeito pelos direitos humanos dos utentes, quer do Serviço Nacional de Saúde quer no sistema privado.

● Considerar, no âmbito do Serviço Nacional de Saúde, outros modelos de assistência ao nascimento para mulheres com gravidez de baixo risco, assim como a inclusão de outras opções de locais de nascimento, como, por exemplo, Unidades de Cuidados de Maternidade integrados numa rede de assistência mais alargada, otimizando a continuidade dos cuidados e respeitando o parto como um evento fisiológico.

● Assegurar diálogo efetivo, sistemático e transparente entre sociedade civil, profissionais de saúde, instituições de saúde, Direção-Geral de Saúde e poder político, criando ou reavivando comissões para o efeito.

● Assegurar o acesso dos cidadãos e cidadãs aos dados relativos às intervenções durante o parto em cada instituição de saúde.

A nível das instituições de saúde, recomendamos:

● A garantia de boas condições de trabalho das e dos profissionais de saúde, técnicos de diagnóstico e terapêutica e auxiliares de saúde, privilegiando vínculos laborais que garantam a segurança e bem-estar, em detrimento de esquemas contratuais que promovem a precariedade, a intermitência, a insegurança laboral e o desgaste pessoal.

● Monitorizar efectivamente o respeito pela legislação em vigor no que diz respeito aos direitos das utentes, quer do serviço nacional de saúde quer nos sistemas privados.

● Incluir, na monitorização da qualidade dos cuidados de saúde materna, indicadores que tenham em conta a experiência das mulheres e dos profissionais de saúde, inseridos em estratégias orientadas pela promoção e proteção dos direitos humanos.

Uma possibilidade é a utilização dos critérios definidos no documento “Mother–baby friendly birthing facilities initiative” (FIGO, 2015), com a inclusão de questionários de satisfação a mulheres e profissionais de saúde, entre outras estratégias.

● Providenciar formação e apoio a todos os profissionais de saúde sobre direitos humanos/direitos das mulheres na gravidez e no parto.

● Possibilitar o acesso de profissionais de saúde a formação e métodos não farmacológicos de alívio da dor, bem como recursos e práticas que promovam o parto fisiológico.

● Assegurar o respeito pela lei do acompanhante e consentimento vigente, assim como o respeito pelas preferências expressas da mulher/casal.

● Assegurar que a evidência científica é sistematicamente incluída nas práticas, assim como tomar medidas para que procedimentos desnecessários, desatualizados ou prejudiciais sejam abolidos de protocolos e rotinas.

Aos profissionais de saúde, recomendamos:

● Assegurar que todas as intervenções durante a gravidez e o parto são precedidas de consentimento ou recusa informados livres e esclarecidos.

● Assegurar que a sua prática de cuidados é baseada na evidência científica mais atual, procurando sempre dar resposta às necessidades individuais, assim como às preferências de cada mulher e casal.

A nível académico e da investigação, recomendamos:

● Incluir na formação dos profissionais de saúde (particularmente médicos e

enfermeiros desta área) a abordagem de prestação de cuidados de saúde baseada em direitos humanos neste contexto da saúde materna e infantil.

● Maior investigação sobre a experiência das mulheres e dos profissionais de saúde na área da gravidez e parto, em particular sobre o impacto de intervenções na saúde e sobre violência obstétrica.

● Maior investigação sobre a forma como a evidência científica é incluída na prática de cuidados.

As nossas famílias, mães e bebés merecem muito mais. Quantos mais terão de morrer para que se considere esta uma urgência?».